Rosana Paulino e Enrica Bernardelli são artistas com histórias diferentes. A arte,
em si, é multicultural e dá voz a todos aqueles que se dispõem a falar, transmitir
emoções e sentimentos. Rosana Paulino, doutora em artes visuais pela Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, é artista e chega ao Museu do Rio
após uma temporada de sucesso na Pinacoteca, em São Paulo. Negra, mulher e com 52
anos, a artista é uma das principais vozes a abordar questões raciais e de gênero. Já
Enrica Bernardelli, mulher, com 59 anos, e de origem itala-brasileira, apesar de possuir uma
história distinta também tratará de questões de gênero em suas composições. Obras da
artista estão presentes no Museu do Rio e compõem a exposição “Mulheres” da coleção
do MAR. Com obras de mais de 150 artistas, a exposição traz a arte como questão crítica
e analítica da sociedade e como a mesma tratará o feminino enquanto passivo social.
As obras, apesar de terem autoras diferentes, de origens diferentes e serem, até
mesmo, de exposições diferentes, conectam-se e dialogam entre si. Enrica Bernardelli,
em sua série de obras “Série Margem”, utiliza da sutileza e da subjetividade para
transmitir sua mensagem. Não há explicação na descrição da obra. Somente através da
reflexão e da tentativa de interpretação é possível compreender o recado que a obra se
põe a transmitir. A figura feminina representada tem seus olhos censurados por uma
faixa branca. Sua boca também sofre do mesmo. E por último possui uma faixa branca
que atravessa seu corpo.
Série Margem - Enrica Bernardelli |
Ao analisar com olhar crítico, é possível observar que tais faixas não são
ocasionais. Não é um erro ou obra do acaso. Cada uma delas representa uma limitação
da tela para com a figura nela representada. A figura é a mulher em sociedade e a tela
a sociedade em si, como corpo vivo e pensante. A mulher faz parte da sociedade, e sofre
as consequências do pensamento social. As faixas são a forma de censura, de
silenciamento da mulher como agente social, inibindo sua visão, para que ela não tenha
a possibilidade de ver o que se passa, o que está acontecendo, como de fato é esse corpo
social. Inibindo, também, sua voz, impedindo a opinião, o pensamento, a fala, jogando a para a margem, ignorando e impedindo que o espectador seja capaz de observar o
que de fato ela tem a transmitir.
A maior delas, que atravessa a imagem de uma ponta a outra, representa a ação
da sociedade em não somente negar à mulher seu pensamento, sua voz, sua visão da
realidade, mas também o seu coração. É proibido amar quem ela quiser, a sociedade
não permite. E muito mais grave do que qualquer uma delas, a faixa delimita uma
separação total das duas partes restantes do corpo.
Faz-se um paralelo com a história da mulher como figura social, o preconceito e
a força social opressora para com ela. Assim como na obra, por séculos a mulher não se
fez ouvir e não se deixou ver. Na Grécia Antiga, como um dos milhares exemplos da
repressão masculina expressa pela sociedade, as mulheres eram impossibilitadas de
obter estudo formal, impedidas do direito ao voto e eram vistas como seres inferiores¹.
Enrica com poucos elementos, de forma poética e simples, trata de um tema
pesado, denso e complexo. Choca o espectador e é através dele que passa sua
mensagem. Nunca poder-se-á saber quem é a figura atrás das censuras, qual seu
pensamento, quem é ela. A sociedade a amarra, acorrenta-a. À esquerda, é impossível nem mesmo reconhecer qualquer coisa que seja, pois
há uma censura total da imagem, daquilo que está inserido socialmente.
Rosana Paulino, na série de obras “Série Carapaça de proteção”, faz uma ligação
com a obra de Enrica. Nela traz inúmeras ilustrações de um ser, uma figura feminina,
que dentro de sua carapaça, seu casulo, encontra-se presa àquela realidade. A mesma
figura pode ser comparada a mulher de Enrica, porém dessa vez atinge um novo ponto
de sua existência. A mulher, que outrora estava presa, acorrentada à cegueira, à prisão,
encontra-se em uma espécie de casulo.
Série Carapaça de Proteção - Rosana Paulino |
O processo de libertação da realidade, da opressão e do silenciamento é
demorado. Com o passar das gerações, dos séculos, o casulo vive um processo de
abertura até o ponto em que a figura feminina se vê livre, pela primeira vez, das amarras
sociais.
Retrata uma alegoria para o movimento feminista, a busca por igualdade e
liberdade da mulher em sociedade, que acontece a partir do século XIX e ganha força no
século seguinte, com as transformações dos paradigmas sociais. A mulher, assim como
uma borboleta, consegue se libertar do casulo a que ela foi condicionada. Porém, por
mais que o casulo esteja aberto, ela tenha conquistado uma reformulação social, ainda
se vê presa ao condicionamento coletivo.
É um processo transformador, e alerta sobre a possibilidade de libertação total.
A “borboleta” um dia estará completamente livre para voar da forma como achar
melhor, sem que ninguém a impeça de expressar-se, ver e amar.
REFERÊNCIAS: 1. CARTLEDGE. Paul. Demócrito: Demócrito e a Política Atomista. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 18-21.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p 33.
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