domingo, 8 de setembro de 2019

Margem Social e a Carapaça Aprisionante


Rosana Paulino e Enrica Bernardelli são artistas com histórias diferentes. A arte, em si, é multicultural e dá voz a todos aqueles que se dispõem a falar, transmitir emoções e sentimentos. Rosana Paulino, doutora em artes visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, é artista e chega ao Museu do Rio após uma temporada de sucesso na Pinacoteca, em São Paulo. Negra, mulher e com 52 anos, a artista é uma das principais vozes a abordar questões raciais e de gênero. Já Enrica Bernardelli, mulher, com 59 anos, e de origem itala-brasileira, apesar de possuir uma história distinta também tratará de questões de gênero em suas composições. Obras da artista estão presentes no Museu do Rio e compõem a exposição “Mulheres” da coleção do MAR. Com obras de mais de 150 artistas, a exposição traz a arte como questão crítica e analítica da sociedade e como a mesma tratará o feminino enquanto passivo social. 

As obras, apesar de terem autoras diferentes, de origens diferentes e serem, até mesmo, de exposições diferentes, conectam-se e dialogam entre si. Enrica Bernardelli, em sua série de obras “Série Margem”, utiliza da sutileza e da subjetividade para transmitir sua mensagem. Não há explicação na descrição da obra. Somente através da reflexão e da tentativa de interpretação é possível compreender o recado que a obra se põe a transmitir. A figura feminina representada tem seus olhos censurados por uma faixa branca. Sua boca também sofre do mesmo. E por último possui uma faixa branca que atravessa seu corpo. 

Série Margem - Enrica Bernardelli
Ao analisar com olhar crítico, é possível observar que tais faixas não são ocasionais. Não é um erro ou obra do acaso. Cada uma delas representa uma limitação da tela para com a figura nela representada. A figura é a mulher em sociedade e a tela a sociedade em si, como corpo vivo e pensante. A mulher faz parte da sociedade, e sofre as consequências do pensamento social. As faixas são a forma de censura, de silenciamento da mulher como agente social, inibindo sua visão, para que ela não tenha a possibilidade de ver o que se passa, o que está acontecendo, como de fato é esse corpo social. Inibindo, também, sua voz, impedindo a opinião, o pensamento, a fala, jogando a para a margem, ignorando e impedindo que o espectador seja capaz de observar o que de fato ela tem a transmitir. 

A maior delas, que atravessa a imagem de uma ponta a outra, representa a ação da sociedade em não somente negar à mulher seu pensamento, sua voz, sua visão da realidade, mas também o seu coração. É proibido amar quem ela quiser, a sociedade não permite. E muito mais grave do que qualquer uma delas, a faixa delimita uma separação total das duas partes restantes do corpo. 

Faz-se um paralelo com a história da mulher como figura social, o preconceito e a força social opressora para com ela. Assim como na obra, por séculos a mulher não se fez ouvir e não se deixou ver. Na Grécia Antiga, como um dos milhares exemplos da repressão masculina expressa pela sociedade, as mulheres eram impossibilitadas de obter estudo formal, impedidas do direito ao voto e eram vistas como seres inferiores¹. 

Enrica com poucos elementos, de forma poética e simples, trata de um tema pesado, denso e complexo. Choca o espectador e é através dele que passa sua mensagem. Nunca poder-se-á saber quem é a figura atrás das censuras, qual seu pensamento, quem é ela. A sociedade a amarra, acorrenta-a. À esquerda, é impossível nem mesmo reconhecer qualquer coisa que seja, pois há uma censura total da imagem, daquilo que está inserido socialmente. 

Rosana Paulino, na série de obras “Série Carapaça de proteção”, faz uma ligação com a obra de Enrica. Nela traz inúmeras ilustrações de um ser, uma figura feminina, que dentro de sua carapaça, seu casulo, encontra-se presa àquela realidade. A mesma figura pode ser comparada a mulher de Enrica, porém dessa vez atinge um novo ponto de sua existência. A mulher, que outrora estava presa, acorrentada à cegueira, à prisão, encontra-se em uma espécie de casulo. 

Série Carapaça de Proteção - Rosana Paulino
O processo de libertação da realidade, da opressão e do silenciamento é demorado. Com o passar das gerações, dos séculos, o casulo vive um processo de abertura até o ponto em que a figura feminina se vê livre, pela primeira vez, das amarras sociais. 

Retrata uma alegoria para o movimento feminista, a busca por igualdade e liberdade da mulher em sociedade, que acontece a partir do século XIX e ganha força no século seguinte, com as transformações dos paradigmas sociais. A mulher, assim como uma borboleta, consegue se libertar do casulo a que ela foi condicionada. Porém, por mais que o casulo esteja aberto, ela tenha conquistado uma reformulação social, ainda se vê presa ao condicionamento coletivo. 

É um processo transformador, e alerta sobre a possibilidade de libertação total. A “borboleta” um dia estará completamente livre para voar da forma como achar melhor, sem que ninguém a impeça de expressar-se, ver e amar. 

Por: Enzo Santoro, Pedro Fernandes, Letícia Gomes, Mayke de Aquino e Julia Menezes.

REFERÊNCIAS: 1. CARTLEDGE. Paul. Demócrito: Demócrito e a Política Atomista. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 18-21.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p 33.

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