quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Rosanas

É através da linha que duas artistas, ambas Rosanas, traçam as dores e memórias da diáspora aos quais seus antepassados foram sujeitos e, para além, costuram uma história de resistência que os permitiu e às permite ser frente a um processo civilizador que ainda tenta suprimir as existências que ele faz marginal. O diálogo entre a exposição A Costura da Mémoria¹ de Rosana Paulino e a videoinstalação Uma história que eu nunca esqueci² de Rosana Palazyan transcende nas semelhanças de forma, com costura em destaque, ou no conteúdo, da migração forçada, porém, é justamente na harmonia entre forma e conteúdo, de contar a diáspora de seu povo através de seus símbolos, signos e práticas coletivas, que são insanamente atacados, apagados e violentados, que é nítido traçar linhas paralelas entre as obras das duas artistas. Rosana Paulino e Rosana Palazyan, a primeira descendente de escravizados africanos sequestrados para o cativeiro América e a segunda de refugiados armênios no Brasil, perseguidos no genocídio no antigo Império Otomano, fazem de sua arte uma resistência que é coletiva, pois não só as projetam, mas traz em conjunto todo o seu povo.
Artista visual, pesquisadora, educadora e doutora em artes visuais pela USP, Rosana Paulino mobilizando o papel, a fotografia, a colagem, a gravura, a escultura e a costura como forma de expressão abarca em sua arte questões e tensões raciais, étnicas e de gênero vivenciadas por corpos negros. Articulando memórias de sua família com a técnica da linha de costura que aprendeu em casa, Paulino cria obras que costuram reflexões sobre o seu povo frente a um processo colonizador branco e violento. Em Parede da Memória (1994/2015), feita com 1300 peças e 1300 olhares que não se podem ignorar, a composição reúne fotografias de seus familiares em patuás, amuleto de tecido típicos do Candomblé cujas as cores e elementos remetem aos Orixás, dispostos em uma parede. O patuá torna-se um compilado, um símbolo da força da família, dos mais velhos e do Orixá, do próprio Candomblé como religião e filosofia, em outros termos, da resistência de uma concepção de ser negra em sociedade estruturada da valorização da branquitude. 
Além disso, em Bastidores (1997), com linhas grossas e pretas sobre o delicado bordado com fotos de mulheres negras, Paulino costura bocas, olhos e gargantas, fazendo-nos refletir das violências e do silenciamento aplicado sistematicamente aos corpos negros, especificamente femininos, na diáspora no Brasil. Paulino, dessa forma, mobiliza um saber local, uma prática doméstica desvalorizada pela branquitude, para bordar a existência de corpos negros marcados pela resistência através de uma técnica que se apresenta como resistente e divergente a uma concepção de mundo ocidental que exclui Rosana Paulino, sua família e seu povo enquanto seres artísticos.  
Paralela à exposição de Rosana Paulino  no Museu de Artes do Rio, a videoinstalação de Rosana Palazyan Uma história que eu nunca esqueci, exposta em Rio dos Navegantes, expõe também a temática da diáspora, porém do genocídio armênio durante as duas primeiras décadas do século XX. Mobilizando signos e práticas da cultura armênia como o bordado, a leitura da borra do café e lavash³, Palazyan conta a própria trajetória trajetória de sua avó forçada a migrar do antigo Império Otomano até o Brasil, mas também conta a história do povo armênio em um período de muita dor e sofrimento. É através das linhas de bordado que Palazyan costura a narrativa através de um vídeo que não perde seu caráter documental. Porém, a obra não se prende ao audiovisual, com um extensão de linhas azuis postas ao chão sobre uma folha branca que unem em direção a tela onde é exibido o vídeo, a artista faz nos refletir da metáfora entre “linha” e “vida”.  
Indo além, se, como argumenta Clifford Geertz, todo “artista trabalha com sinais que fazem parte de sistema semióticos que transcendem em muito a arte que ele pratica” (GEERTZ, 1998), Paulino e Palazyan, ao trabalharem com práticas e símbolos de seus povos, em destaque a costura, acabam por reafirmar o valor de sua cultura, frente aos processos de desumanização que sofreram. Ao trazerem os saberes locais de suas culturas para fazer arte, ambas acabam por fazer uma metacrítica à processo eugênicos que operaram ( e ainda operam) aos seus povos orquestrados pela imposição de um modelo único de ser. 

  • Por Beatriz Chalhub, Gustavo de Queiroz e Lucas Trindade.

Notas:
1. Curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Henry no Museu de Artes do Rio
2. Presente na exposição Rio de Navegantes no Museu de Artes do Rio
3. Pão-folha, pão tradicional da Armênia que não leva levedura.

Bibliografia:
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.

Nenhum comentário

Postar um comentário

© Comunicação e Artes
Maira Gall